A guerra às drogas é um fenômeno relativamente recente, mas de profundo impacto político e social em âmbito mundial. Apesar da aparente motivação moral da proibição da produção, comércio e consumo de drogas, o regime proibicionista cumpre um papel importante no regime de acumulação capitalista, intensificado pelo neoliberalismo.
No Brasil, assim como em outros lugares do mundo, os grupos mais afetados pela guerra às drogas são negros e trabalhadores precarizados. É preciso aboli-la, mas também reparar os danos causados até então. Isso pode ser feito imediatamente, iniciando uma transição para uma política que contribua para promover justiça histórica e uma paz duradoura para o povo. É um dos objetivos do PL 844/2023, apresentado pelo Deputado Fábio Félix na Câmara Legislativa do Distrito Federal.
Guerra às drogas como braço armado do neoliberalismo
Em 1971, Richard Nixon, então presidente dos Estados Unidos, elegeu as drogas como o inimigo público número um do país, declarando a guerra às drogas. A medida tinha uma intenção evidentemente racista e ideológica, como foi explicitado pela já conhecida entrevista de seu antigo assessor para assuntos internos, John Ehrlichman:
“A campanha Nixon em 1968, e depois a administração Nixon na Casa Branca, tinham dois inimigos: a esquerda antiguerra e a população negra. Compreende? Sabíamos que não podíamos simplesmente proibir o movimento pacifista ou o movimento negro, mas ao associarmos os hippies com a maconha e os negros com a heroína, e criminalizando-os duramente em seguida, poderíamos desfazer essas comunidades. Podíamos prender os seus líderes, fazer buscas às suas casas, interromper as suas reuniões e difamá-los todas as noites nos noticiários. Se sabíamos que estávamos mentindo sobre as drogas? Claro que sabíamos.”
“Existem três mecanismos principais pelos quais a guerra às drogas promove os interesses do capitalismo neoliberal: por meio da imposição do endurecimento penal, pela militarização formal de políticas de segurança e pela paramilitarização que resulta dela.”
Apesar do sincericídio incomum dessa fala, ela encobre outros efeitos mais profundos da guerra às drogas. Dawn Paley fez um extensivo trabalho sobre como a guerra às drogas tem uma função para a política de concentração e acumulação capitalista de modo imperialista, em benefício dos países centrais, prejudicando trabalhadores de países periféricos. Analisando os casos da Colômbia, México e Guatemala, a autora argumenta que o objetivo dessa política violenta patrocinada diretamente pelos Estados Unidos não é impedir o fluxo de substâncias consideradas ilegais para o norte global. De fato, é um objetivo que essa política tem sistematicamente falhado em cumprir. O real objetivo seria, portanto, aumentar o fluxo de capital para o norte global, abrindo mercados, impondo legislações extrativistas, deslocando comunidades de terras ricas em recursos e dizimando movimentos sociais por meio do medo, desaparecimento forçado e assassinatos extrajudiciais. Paley escreve que existem três mecanismos principais pelos quais a guerra às drogas promove os interesses do capitalismo neoliberal: por meio da imposição do endurecimento penal, pela militarização formal de políticas de segurança e pela paramilitarização que resulta dela.
Apesar de não se tratar de um dos casos analisados pela autora em seu livro, a realidade encontrada naqueles países ressoa diretamente com a realidade vivida pela maioria da população também no Brasil. A política de drogas tem um efeito brutal no superencarceramento, que por sua vez acaba por reduzir o salário dos trabalhadores egressos do sistema prisional, aumentando consequentemente o lucro de empresas. Também aumenta a violência estatal contra jovens negros em comunidades de trabalhadores precarizados, coloca sob suspeita qualquer movimento social baseado nesses lugares e cria um ambiente favorável ao surgimento de milícias que têm atuação semelhante à paramilitar.
O Brasil conta com aproximadamente 800 mil pessoas privadas de liberdade, dos quais 28% estão detidos por infrações relacionadas à lei de drogas, totalizando 193.001 pessoas. No conjunto da população carcerária, destaca-se que 68,2% são pessoas negras, uma percentagem notavelmente superior à representação de 56% da população negra no país. Ao examinarmos os dados referentes à violência, outra faceta dessa política de combate às drogas, percebemos que um indivíduo negro tem mais que o dobro de probabilidade de ser vítima de homicídio em comparação a um indivíduo branco. 75% das vítimas de homicídios no Brasil pertencem à comunidade negra. Além da dimensão racial, a guerra às drogas afeta majoritariamente pessoas que vivem em favelas e periferias. No Rio de Janeiro, 75% das acusações por associação ao tráfico fundamentam-se na localização da apreensão, indicando que residentes de periferias e favelas enfrentam uma maior probabilidade de serem detidos por tráfico de drogas.
Justiça de transição contra os efeitos da guerra
Entender as relações entre guerra às drogas e capitalismo nos ajuda a compreender os dois fenômenos e pode contribuir para superá-los. É fundamental que, entendendo esses mecanismos, lutemos para mudar essa realidade. Uma das formas pela qual podemos fazer isso é através de mecanismos de justiça de transição aplicados à reforma da política de drogas. Se um dos mecanismos através dos quais a guerra às drogas beneficia o modelo de acumulação capitalista imperialista é o enfraquecimento de populações negras e periféricas, é preciso lutar não só pela superação da guerra às drogas, mas também pela adoção de políticas que revertam esse impacto.
A justiça de transição, conforme definida por Kofi Annan, abrange processos para lidar com abusos em larga escala do passado, buscando responsabilização, justiça e reconciliação. Os quatro processos-chave – justiça, reparação, verdade e reforma institucional – oferecem uma estrutura para abordar os impactos da guerra às drogas. No processo de justiça, é crucial investigar e responsabilizar os agentes do Estado envolvidos em violações de direitos humanos durante a guerra às drogas. A reforma institucional visa evitar atrocidades semelhantes, incluindo a revisão de políticas de drogas. O processo de verdade busca investigar completamente as políticas da guerra às drogas e divulgar informações sobre responsáveis e impactos. A reparação é essencial para compensar vítimas, oferecendo apoio psicossocial, assistência jurídica, compensação financeira e integração econômica ao mercado regulado de drogas. Essas medidas visam mitigar os danos causados pela criminalização e reintegrar as comunidades afetadas.
“A iniciativa propõe a destinação dos tributos provenientes de produtos ou serviços à base de cannabis para programas e iniciativas voltadas à reparação de comunidades historicamente impactadas pela política de guerra às drogas.”
Aplicar a justiça de transição para a guerra às drogas é um desafio, uma vez que não é um conflito tradicional. Provavelmente não haverá um momento em que duas partes sentarão e assinarão um acordo de paz. Portanto, os processos de justiça de transição também devem iniciar desde já.
Objetivamente, a reforma da política de drogas já está acontecendo. Em diversos lugares do mundo, drogas que antes eram consideradas ilegais já são produzidas, vendidas e consumidas com poucas restrições, como qualquer substância normal. Mesmo aqui no Brasil, onde a reforma da política de drogas caminha a passos muito lentos, já há um forte mercado de cannabis regulamentado para fins medicinais. Essa mudança na regulamentação das drogas deve vir acompanhada de políticas de reparação para comunidades afetadas.
O Projeto de Lei número 844/2023, do Deputado Fábio Félix, tem esse objetivo. A iniciativa propõe a destinação dos tributos provenientes de produtos ou serviços à base de cannabis para programas e iniciativas voltadas à reparação de comunidades historicamente impactadas pela política de guerra às drogas. Essas políticas serão conduzidas pelo governo sob supervisão de um conselho, com a participação de representantes de movimentos e organizações de comunidades afetadas. Além disso, empresas e associações que contem com ex-detentos ocupando posições-chave seriam isentas de tributação. Essa medida visa estimular a ressocialização e a inclusão dessas pessoas no novo mercado regulado. É uma iniciativa que pode ser replicada tanto em outras localidades como em nível nacional e deve vir acompanhada de outras medidas que se adequem aos processos de justiça de transição.
É preciso abolir a guerra às drogas e o capitalismo. Tanto os regimes proibicionista quanto o regime capitalista são sistemas que se fortalecem entre si. A abordagem da justiça de transição para o fim da guerra às drogas é uma forma de utilizar a luta em defesa da legalização das drogas para empoderar comunidades, expor as contradições do regime capitalista e garantir uma paz duradoura, que não seja a paz dos cemitérios, mas a paz que seja estritamente vinculada à liberdade de todo o povo.
Sobre os autores
é Cientista Político e Secretário da Comissão de Defesa de Direitos Humanos da Câmara Legislativa do Distrito Federal.